Mudança tecnológica e mutação psico-cognitiva são interdependentes, como o são o organismo e o seu ecossistema. O organismo do qual falamos é o organismo consciente que a tradição humanística idealiza conforme certas características. Mas as limitações humanísticas do organismo consciente entraram num estado de tensão. A extensão bio-maquínica é o problema frente ao qual a evolução se encontra atualmente. O organismo consciente é também organismo senciente, feito de receptores sensíveis, terminal sensível. A entropia da linguagem O mundo em que vivemos começa a se mostrar como o resultado de um zapping projetivo no qual combinamos seqüências de proveniências lingüísticas diversas, em fragmentos herméticos que funcionam como chaves para abrir uma porta além da qual não há mais que o vazio. Experimentação hermética transcultural, construção de auto-estradas transparentes que correm irresponsáveis na direção do céu. A infosfera é o ambiente no qual os organismos se formam como células interconectadas. A linguagem constrói este sistema de inervações e simula uma comunidade, uma atribuição; é na linguagem que se forma a simulação da origem, função da compreensão recíproca, mas também ilusão de um fundamento comum. A atribuição e a comunidade se fundam na linguagem, mas na realidade o processo comunicativo é dispersão: todo ato de comunicação é entrópico. Podemos falar, é claro, de uma língua como fenômeno estruturado, como execução de um programa gramatical – mas se trata de uma abstração. A realidade falada, vivida, de uma língua é de um gênero totalmente outro, é um processo fluido, um equilíbrio instável no devir da diáspora. Que é uma diáspora? O derivar de um lugar (ilusório, puramente mental, projeção nostálgica, alucinação da memória e simulação de identidade) na direção de todos os outros lugares. A diáspora é então a dispersão de uma verdade e de uma coerência originária, a qual de fato é nada mais que uma projeção nostálgica. Dispersão de uma simulação compartilhada. Entropia de uma ilusão projetada sobre o passado. “Não há a universalidade da língua, não há a universalidade dos atos lingüísticos. A toda seqüência de expressão lingüística é associada uma rede de cadeias semióticas de toda natureza (perceptivas, mímicas, gestuais, pensamentos por imagens etc.). Todo enunciado significante cristaliza uma dança muda de intensidade que se joga ao mesmo tempo sobre o corpo social e sobre o corpo individual. Da língua à glossolalia, todos as transições são possíveis” (Félix Guattari, L’inconscient machinique, 1979). Toda língua falada é o ponto de encontro transitório e evasivo de diferentes diásporas, de vários afastamentos de lugares passados virtuais puramente nostálgicos. A modernidade tardia é a época em que toda a humanidade é submetida a um desenraizamento, uma diáspora feita de emigrações e de colonização culturais cruzadas, mas também de uma constante emulsão informativa que goteja através de cada poro da vida cotidiana. Para compreender o processo da mutação, deve-se ter em vista o ponto de intersecção entre a linha da mudança tecno-comunicativa e a fenomenologia da sensibilidade. Aparato tecno-comunicativo e sensibilidade formam o rizoma do devir psicoquímico. Diáspora e pânico Na época da modernidade tardia, as tecnologias de comunicação põem em movimento um processo de desterritorialização generalizado e constante que se manifesta como desenraizamento e ubiqüidade, e como aleatoriedade da relação entre signo e referente. A desterritorialização da modernidade tardia rasga o véu ilusório da referencialidade da linguagem e da identidade psíquica, premissa ilusória que o sujeito moderno trazia dentro de si: ilusão representativa, culto romântico da atribuição. O vigor totalitário da modernidade, o integralismo, o economicismo, o fascismo, o socialismo autoritário são todos manifestações desta obsessão pela origem. A desterritorialização telemática faz explodir todo reconhecimento do território sensível, não menos que toda coerência objetiva do mundo conhecido. O inconsciente social reage à desterritorialização com um tipo de pânico aterrorizado por que o investimento social do desejo não o leva a aceitar a deriva como condição do consistir, não o predispõe a reconhecer o vazio e como destino e como ponto de chegada do conhecer. O pânico é a reação do organismo consciente improvisadamente despertado ante o irromper da proliferação semiótica, e improvisadamente privado dos filtros de que dispunha a mente crítica e disciplinar da modernidade. A sociedade moderna criou suas estruturas disciplinares como um exorcismo contra o vazio e contra o pânico. Mas agora o poder comunicativo da tecnologia digital produz um excesso de informação, em relação ao tempo de atenção socialmente disponível. O mercado da atenção está saturado. Marx falava de crise de superprodução referindo-se ao excesso de oferta determinado pelo crescimento produtivo, demasiado rápido em relação à capacidade de absorção do mercado. Hoje o lugar essencial da crise de superprodução é o mercado da atenção, o tempo de elaboração consciente disponível na sociedade. A inflação semiótica Os centros de onde provém o fluxo de informação se multiplicam e se tornam invisíveis até produzir um efeito de inflação incontrolável. Inflação significa: sempre mais dinheiro para comprar sempre menos mercadoria. A inflação semiótica se manifesta como um regime no qual sempre mais signos compram sempre menos sentido. “Aqueles que devem ser guias para a população vêem demasiados aspectos de todas as questões, investigam tantas coisas e descobrem que se podem dizer tantas delas a propósito de todas as coisas, que não comprovam mais segurança a respeito de nada. Um sentido oprimente não só da relatividade das idéias, mas de uma enorme quantidade e incoerência da informação, uma cultura de cruzamentos e de energias inextrincáveis – esta é a sensação primária de nosso tempo” (Charles Newman, The Post-Modern Aura, 1985). E no último número da “Wired”, John Perry Barlow escreve: “A maior parte do congresso americano se encontra agora am situação de datashock. Todos dispõem de, com dificuldade, de um tempo de atenção equivalente a uma viagem de elevador. Catástrofe da complexidade em que um organismo é obrigado pelo contexto a elaborar mais informação do que aquela que pode compreender. O sintoma freqüente é a fibrilação, um tremor que precede o colapso do sistema. Podemos dizer que todo o congresso e o governo dos Estados Unidos chegaram a este estado”. Os automatismos decisórios Os signos proliferam além da capacidade de recepção atenta, e além da capacidade de decodificação consciente. Os signos não são mais sujeitos a interpretação. Tornaram-se, ao contrário, um oceano no qual se navega através de cadeias de associações. A superestimulação provoca sobre o plano cognitivo um tipo de obscurecimento da atenção, que leva a efeitos de desligamento. O processo de decisão que depende da atenção fica progressivamente automatizado. Os automatismos tecno-sociais substituem progressivamente a vontade humana no processo da decisão. Caminhamos na direção de uma salutar rendição da vontade. Decidir, escolher, querer, são atividades impossíveis, do ponto de vista do sistema info-cognitivo. Drogas e tecno-comunicações Mas a sensibilidade, aquele processo de singularização do mundo experienciado a que chamamos erotismo, como se redefine, como se adequa à superestimulação? Conhecemos duas técnicas de mutação do organismo senciente frente à superestimulação: uma técnica é aquela da intensificação perceptiva (drogas de tipo afentamínico, XTC, aumento da capacidade de elaboração perceptiva da experiência na unidade do tempo); a outra é aquela da redução dos sinais a entrarem, através da proteção do sistema receptivo (drogas de tipo opiáceo, redutoras do afluxo de estímulos e refinadoras da qualidade perceptiva da experiência). Drogas e tecno-comunicação estão em estreita relação; são os dois fatores de alteração da relação mente-mundo. Quando falamos de drogas devemos tomar esta palavra em toda a sua extensão, não reduzida à restrita farmacopéia das substâncias criminalizadas pela lei, mas estendida a todas as substâncias que regulam a relação da sensibilidade com o ambiente. E quando falamos de drogas, nesta altura devemos reconhecer que estamos simplesmente iniciando um discurso sobre a auto-mutação, sobre a mutação auto-administrada a que o organismo consciente/senciente se induz a si mesmo para aprender a elaborar cognitivamente, perceptivamente, emotiva e eroticamente o material informativo-estimulante que recebe. Com efeito, estamos apenas começando um discurso sobre a mutação genética auto-induzida, que constituirá provavelmente o percurso de readequação do organismo consciente ao hipermundo. Política da mutação A política da mutação que deveremos provavelmente desenvolver não terá mais nada a ver com a idéia de transformar um mundo que se tornou de todo ingovernável por parte dos agentes humanos (meros fragmentos de um cérebro de um superorganismo intergrado e governado por automatismos bio-maquínicos e tecno-linguísticos), mas serão essencialmente mutações genéticas e perceptivas auto-induzidas, próteses químicas e neuro-físicas que gerarão o organismo capaz de elaborar material informativo e perceptivo que não pode mais ser nem elaborado nem possuído na esfera do humano. O pós-humano não é um dado, mas um projeto no qual já estamos trabalhando, sem saber o quanto conscientemente.
terça-feira, 10 de março de 2009
segunda-feira, 9 de março de 2009
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