sexta-feira, 25 de maio de 2007

Nêmesis!




Através dos portões assombrados do sono para além do noturno abismo, tenebroso tenho
vivido minhas vidas incontáveis e sondando com a vista a multidão das coisas;
e me debato e grito antes do amanhecer,
enlouquecido pelo medo.
Rodopiei com a terra em seu alvorecer,quando o céu era só uma poeira de fogo;
e vi o bocejar do sombrio universo,por onde giram sem propósito os planetas,
por onde giram num terror que ninguém ouve,sem consciencia, brilho ou nome.
Tenho vogado sobre mars infinitos,sob uns sinistros céus que as nuvens enegrecem;
que fende, a serpentear, o raio coruscante,e que ressoam com os histéricos lamentos,
com os gemidos de dêmonios invisiveis,que se elevam das águas verdes.
Como um cervo, atirei-me através das arcadas,
do bosque primordial, vetusto e esbranquiçado,onde o carvalho sente a presença que marcha,
pisnado um solo onde ninguém ousou a pisar;
e fujo de uma coisa estranha que me envolvee olha, lá do alto, de entre os galhos.
Perambulei pelas montanhas cavernosasque se erguem da planice, estéreis e desertas.
Bebi da fontes cujo odor era o do sapo,que fluem lentamente até o pantano e o oceano;
e em lagos quentes e malditos vi coisasque nunca mais quero rever.
Vasculhei o palácio encoberto pela hera,atravessei o seu vestíbulo deserto,
onde a Lua que sobe e avança sobre os valesexibe as formas dos tapetes das paredes,
estranhas formas, que o delírio entreteu,as quais não lembro sem tremer.
Espiei através das folhas das janelaspara as florestas decadentes ao redor,
para essa aldeia cujos tetos numerosossofrem a maldição de um solo tumular;
e de entre o mármore entalhado das colunasescuto, à espreita de algum som.
As tumbas frequentei das eras infinitas.
Nas asas do pavor, voei as regiõesonde arrota fumaça do Érebo,
e ao longe surgemmontes que a neve encobre, enevoados e lugubres;
e aos reinos onde o sol de deserto consomeo que jamais há de alegrar.
Eu era velho quando os faraós ocupavamseu opulento trono às margens do amplo Nilo;
eu era velho já nessas pristinas eras,quendo eu, e somente eu, fui vil;
e o Homem ainda,em bem aventurança, imáculo, habitava a ilha do Ártico longinquo.
Oh, grande foi de meu espírito o pecado,
e de sua sentença o alcance imorredouro;não pode redimi-lo a clemência do Céu,
nem sua falta ser aplacada no túmulo:
Vêm batendo através dos éons infinitosas asas da impiedos treva.
Através dos portões assombrados do sonopara além do noturno abismo,
tenebroso tenho vivido minhas vidas incontáveise sondando com a vista a multidão das coisas;
e me debato e grito antes que o que nasça,
enlouquecido pelo medo.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Embreagado pelo Perfume das Flores.


§ O navio da humanidade tem, ao que se julga, um calado [distância entre o ponto de flutuação e a quilha da embarcação] sempre maior, quanto mais carregado for, quanto maior, acredita-se que mais profundo é o pensamento do homem, tanto mais seu sentimento é terno, que quanto maior estima tiver de si próprio, tanto maior será o seu afastamento dos outros animais, que quanto mais ele aparecer como gênio entre os animais, tanto mais se aproxima da essência real do mundo e de seu conhecimento, mas julga faze-lo por meio de suas religiões e de suas artes. Estas foram, em verdade, uma floração do mundo, mas que não está de modo algum, mais próximo da raiz do mundo. Não se pode, de modo algum tirar delas uma melhor compreensão da essência das coisas, embora quase todos acreditem que sim. O Erro! O erro tornou o homem tão profundo, tão sensível, tão criativo, que produziu uma flor tal como são as religiões e as artes. O conhecimento puro não teria tido condições de faze-lo. - Quem desvenda-se a essência do mundo nos daria a todos a mais desagradável desilusão. Não é o mundo como coisa em si, mas o mundo como noção [Erro], que é tão rico de sentimento, tão profundo, tão maravilhoso, trazendo em seu seio a felicidade e a infelicidade. Esse resultado leva a um conceito da "negação lógica do mundo", a qual de resto, tanto pode conciliar com uma afirmação prática do mundo como o seu contrário.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Consciência Última!



De E.P.

O termo "consciência convencional" diz respeito a exatamente o quê? Há uma consciência última em oposição a ela? O que as diferenciaria?Alan Wallace quando esteve no Brasil falou em três: consciência grosseira, consciência sutil e consciência última.A consciência grosseira é a nossa identificação com os sentidos físicos e os pensamentos e emoções. É ela que produz, na sua confusão, a noção de um "eu". Ela possui uma continuidade extremamente restrita.A consciência sutil são os padrões cármicos arraigados que produzem consciências grosseiras vida após vida. Sua continuidade é maior, mas não ilimitada.A consciência última é o aspecto luminoso da vacuidade. Quando se diz "vazio é forma" está se referindo a isso, ou também quando se diz que o dharmakaya é prenhe de todas as possibilidades.A disputa entre as escolas se resume em quatro posições:1) Visto que é possível transformar esta terceira consciência num objeto e reificá-lo, algumas formas de budismo se apegam ao antídoto e produzem uma negação quanto a esse conceito.2) De uma forma um pouco mais sofisticada, algumas tradições afirmam coisas tais como "natureza de buda", etc. Isso equivale a praticar de forma não-causal e abandonar a noção de um resultado, já que o resultado está presente desde o "princípio sem princípio".3) A posição de Nagarjuna como interpretada por Chandrakirti, porém, não cai em nenhum extremo de afirmação ou negação, e apenas revela esta natureza através de "domar tudo a ser domado", mostrando o equívoco na manutenção de qualquer fixação a doutrinas.4) A partir da posição de Nagarjuna, todas as diferentes doutrinas surgem como meios hábeis a serem utilizados em relação a necessidade dos seres. Assim, como não há antídoto a ser aplicado ou aperfeiçoamento a fazer, nada é desperdiçado.Encontraremos por todo lado praticantes e professores do dharma mais ou menos fixados em qualquer uma das quatro formas, seja por ação compassiva de ensinar aquilo que os seres precisam e não o que ainda não são capazes de entender, seja porque eles ainda mantém fixações a teorias e sustentam suas opiniões. Creio que é noção comum que o próprio Buda ensinou das quatro formas simultaneamente, mas como não somos oniscientes, em geral surge um carma de preferência e a necessidade de defender idéias desse ou daquele tipo e aplicar antídotos.
...Nesse âmbito, tudo soa nonsense. Quando nos referimos a "mente", estamos falando dela como um objeto, mas a mente "última" é a fonte de sujeito e objeto, ou ainda, a coemergência de sujeito e objeto, e em nada difere da própria vacuidade.Porém, até mesmo "vacuidade" pode se tornar um ponto de fixação. Algumas professores até mesmo dizem que um sutra como o Prajnaparamita ainda revela uma leve tendência niilista, apesar do "vazio é forma, forma é vazio". Eu discordo deles, porém a questão da luminosidade do vazio só vai ficar realmente clara em textos tais como o Uttaratantra de Maitreya.De uma forma mais simples, se pode dizer apenas que todos os conceitos são meios hábeis, e não pode haver um conceito cujo sentido em si seja o entendimento ou realização daquilo que nos interessa, o dharma. Quer dizer, o vajrayana brinca com isso através do próprio termo "vajra" — mas isso é um meio hábil que algumas pessoas de bom mérito podem usufruir, não é meu caso.Em certo sentido, vajra, mente última, vacuidade, natureza de buda, perfeição da sabedoria, grande perfeição, nirvana, dharmakaya, etc — embora não sejam a mesma coisa, referem-se a mesma coisa1, a qual não pode ser perfeitamente adequada a qualquer conceito.E é claro, se quisermos ir mais longe, em outras tradições religiosas, por exemplo, com certeza encontramos muito mais palavras. É muito importante que não achemos que prática espiritual é ficar descobrindo novas palavras e novas conexões entre as palavras. Descobrir que Fulano é outro nome para Beltrano não diz nada a respeito de conhecer a pessoa, chamemos ela de Fulano ou Beltrano.Há uma natureza última da consciência a ser conhecida e/ou realizada ou uma consciência última?As duas perspectivas existem, as duas não são definitivas, a segunda é mais sofisticada que a primeira.A prática pode ocorrer de forma causal, em que buscamos algo, ou de forma não-causal, em que usufruimos de algo. A prática causal é feita com grande esforço, e leva um longo tempo. Em termos não-causais, ela pode ser sem esforço ou com esforço. A prática sem esforço é melhor, para aqueles que são capazes dela. Para pessoas como eu, porém, isso são só palavras a que eu me apego. Porém cabe sempre lembrar que enquanto houver a noção de que algo esteja acontecendo, sendo descoberto, realizado, ou que nos dê qualquer espécie de conforto ou segurança, devemos perceber que isso é apenas um sonho, e assim não nos vincularmos a nenhuma espécie de fenômeno particular. As teorias filosóficas, o chocolate e o sexo estão nessa categoria.